Moisés

A mãe voltou a mentir-me. Disse-me que não tinha recebido nenhuma carta. Jurou que o meu pai não tinha voltado a dar sinal de vida. Mas eu sei que voltou. A brasileira que está com ele escreveu-me. A carta veio em meu nome. Moisés. E já não é a primeira carta. Com esta já são 3. 

A mãe voltou a mentir-me. 

O meu pai quer que vá ter com ele ao Brasil. Tem 2 filhas no Brasil. 2 filhas em Portugal. E eu estou em Portugal. E ele que tanto quer o seu rapaz junto dele, diz a brasileira na carta. Chama-me "filho que eu ainda não conheço". E eu por vezes quero ir. Dizem-me que as minhas irmãs brasileiras estão a estudar. E eu? Enfiado numa puta de uma fábrica desde os 10 anos. A ter que concordar com tudo o que aquela besta do encarregado me diz. A ter que fazer tudo o que ele manda. Mesmo quando está errado. E está quase sempre.

A minha mãe voltou a mentir-me.

 Estou farto desta terra maldita. Farto de estar num lugar onde todos medem menos 2 palmos que eu. Farto de ser o único com olhos verdes. Farto dos gracejos relativos à minha mãe e às minhas irmãs. 

Só não vou amanhã, porque não quero deixar a minha mãe sozinha. Ela precisa de um homem em casa. Uma casa perdida no meio do monte com 3 mulheres sozinhas? Não posso ir. 

Só não vou amanhã, porque me quero casar com a Isaura. E irei conseguir. Por muito que ela diga que eu sou demasiado alto, magro e desajeitado. 

A mãe voltou a mentir-me. 

Ontem voltei a ter que virar costas a um cabrão que insultou a minha irmã. A minha mãe pediu-me pelas almas para que não voltasse a lutar. Porque não havia uma semana em que não andasse à pancada. E na última vim com um corte no sobrolho. Uma navalha que passou demasiado perto do meu olho. E a minha mãe levou me ao altar de Nossa Senhora do Rosário enquanto chorava e obrigou me a prometer que não voltaria a lutar.

A mãe voltou a mentir-me.

Que a terra engula o meu pai. Que nos deixou aqui abandonados à nossa sorte. Que foi fraco. Que se esqueceu que já tinha 3 mulheres. 

Por duas vezes fizemos as malas. Duas vezes em que a mãe me levou a cortar o cabelo. Duas vezes em que a mãe mandou cortar um fato novo. Duas vezes em que chegaram telegramas a dizer para não partirmos. Duas vezes em que vi a mãe novamente a chorar.

E a minha mãe voltou a mentir-me.